Entrevista com Washington Fajardo

Entrevistado: Washington Fajardo, Presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural

 

FGV Projetos: Recentemente, o Sr. publicou um texto no qual afirma que não há cidadania plena sem cidade. Na sua avaliação, quais são os principais pontos que devem constar na agenda urbana para se promover um desenvolvimento urbano sustentável? 

Washington Fajardo: Eu avalio que a sociedade brasileira nos últimos 20 anos conseguiu grandes avanços. Nós nos propusemos a equacionar o problema da instabilidade econômica, que foi resolvido. Hoje, estamos num cenário de problemas econômicos, mas é interessante avaliar como essas conquistas e a estabilidade produziram uma institucionalidade com a qual não se pode mexer mais. Elas se tornaram um instituto da sociedade brasileira. Então, encaramos essa agenda e obtivemos grandes resultados. Da mesma maneira, posteriormente, a sociedade brasileira, pelo seu voto, se comprometeu com uma agenda de inclusão social e, também, tivemos grandes resultados.

Eu penso que, hoje, por estarmos vivendo um momento de crise econômica e política, a nossa autoestima está baixa. Mesmo com o sucesso das olimpíadas, nós não estamos conseguindo ver as novas perspectivas. 

A estabilidade econômica e a inclusão social criam bases para uma terceira agenda importante que é a agenda urbana.  Precisamos melhorar o território e a vida das pessoas na cidade, porque as cidades continuam ineficientes e injustas, enquanto as pessoas passaram a ter condições de vida melhores. Entretanto, não se pode dizer que o acesso a bens de consumo tenha produzido cidadania.

Por exemplo, se uma pessoa é maltratada numa relação com um fornecedor de serviços ou numa loja, ela reclama e abandona aquele fornecedor. Mas, se for mal atendida no seu ônibus diário, ela precisa voltar nele. O que a cidade oferece é bem público e o bem público não tem opção de escolha, pois é de todos. Nós precisamos avançar na agenda urbana porque a sociedade brasileira é urbana. Estamos entre os países com a maior taxa de urbanização do mundo, mais de 75%. 

Precisamos avançar no acesso à cidade. Entretanto, esse tema de acesso à cidade começou a virar um certo clichê que se repete e não se sabe mais o que se quer dizer. Na minha perspectiva, acesso à cidade quer dizer que precisamos discutir prioritariamente três questões principais. 

A primeira delas consiste em estabelecer políticas habitacionais e aplicar instrumentos de regulação de uso do solo para permitir moradias acessíveis. Não me refiro, no entanto, a moradias dadas pelo Estado, mas às políticas adotadas em alguns países desenvolvidos nas quais alguns empreendimentos deve ter um coeficiente de unidades que vão atingir esse perfil de mercado. Nós não fazemos isso. Temos um laissez-faire do uso do solo, só que o mercado não resolve isso, pois possui imperfeições. Então, nós temos uma lacuna de políticas públicas voltadas para moradia. Quando olhamos para as práticas internacionais, vemos um cardápio de políticas públicas. Nós só temos uma, que é o Minha Casa, Minha vida, e isso não é uma política habitacional, mas, sim, de desenvolvimento econômico com foco em pequenas e médias construtoras. Precisamos investir em políticas habitacionais, pois são elas que vão dar acesso à cidade. 

Uma segunda necessidade é olhar para o espaço público entendendo que o seu ordenamento não significa restrição à liberdade. Devido à condição social injusta, acabamos sendo lenientes com a desordem do espaço público, como, por exemplo, quando observamos o modo como os ambulantes e trabalhadores informais são tratados, mas precisamos assegurar que o espaço público seja para todos. Segundo uma pesquisa da Fecomércio do Rio de Janeiro sobre as cidades do Estado do Rio de Janeiro, é possível observar que o ordenamento do espaço público é o segundo ponto de reclamação dos comerciantes. Há, também, uma pesquisa da Câmara Técnicas da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, na qual o ordenamento público é o quarto item que aparece de reclamação das pessoas sobre a qualidade de vida nas cidades. Então, o ordenamento do espaço público é muito importante

A terceira questão é que a partir desse ordenamento do espaço público deve-se promover um incremento das áreas verdes, como parques e praças, que amenizem a vida na cidade. 

Estes três pontos devem estar como prioridade na agenda. Obviamente, há um outro quesito, que é o da mobilidade, tratando-a em escala metropolitana. Esse seria um quarto item que é importante, mas temos que estabelecer essa diferença, pois nós só equacionamos a mobilidade brasileira se olharmos para a escala metropolitana. Não resolveremos os desafios urbanos com as secretarias de transporte de cada município. Cada município vizinho define o seu ordenamento de transporte e isso não funciona. Precisamos de uma autoridade metropolitana de transportes, como acontece em cidades como Londres, Paris e Nova York. 

A PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO TEM REALIZADO DIVERSOS TRABALHOS DE REVITALIZAÇÃO, INCLUSIVE, DO PATRIMÔNIO CULTURAL DE ÁREAS URBANAS. O SR. PODERIA CITAR ALGUNS EXEMPLOS DESTES PROJETOS QUE ESTEJAM ALINHADOS COM A PROPOSTA DE UM DESENVOLVIMENTO MAIS SUSTENTÁVEL PARA A CIDADE DO RIO DE JANEIRO?

>> Nós não podemos dissociar a recuperação do patrimônio cultural da recuperação dos centros urbanos históricos. Não à toa, isso é um problema presente em todas as capitais brasileiras. Se somarmos a população das 27 capitais, são mais de 49 milhões de brasileiros. Se somarmos da região metropolitana, são mais de 95 milhões. Todas diferentes, mas iguais em alguns problemas, como centros vazios, com bordas periféricas informais. Não podemos dissociar isso, pois é importante para assegurar a sustentabilidade para este centro histórico e este patrimônio. Senão, estaremos criando uma gestão de patrimônio cultural que é insustentável. Assim, investimos recurso público, recuperamos, mas daqui a 10 anos temos que recuperar de novo, porque não se desenvolveu uma sociedade ao redor do bem cultural. Nós precisamos de gente, de diversidade.

O que a prefeitura do Rio fez é muito estratégico para o desenvolvimento urbano da cidade. Quando prioriza o Centro, por meio do Porto Maravilha, faz uma inflexão na lógica do desenvolvimento urbano da cidade vigente nos últimos 40 anos, que é a de expansão da cidade. Isso tem um impacto tangível e intangível. Tangível, porque começamos a ter um centro melhor, mais visitado e com o turismo melhor desenvolvido. Um exemplo concreto: restaurantes que não abriam no final de semana, agora abrem. Temos também um resultado intangível. Nestes últimos 40 anos, entendíamos que expandir a cidade era promover desenvolvimento econômico. Tínhamos um modo de pensar que associava que era bom a cidade estar crescendo, pois estaríamos ficando mais ricos e desenvolvendo a sociedade. Isso é um equívoco. A dimensão intangível em recuperar o centro pode ser traduzida na mudança no modo de pensar a cidade. Começamos a olhar para uma cidade que já temos e vemos que ocupando melhor esta cidade, preenchendo os seus vazios, conseguimos promover o desenvolvimento econômico. São abertos novos negócios, as pessoas começam a morar mais perto do trabalho, criando, assim, um ecossistema urbano mais sustentável e mais resiliente a crises econômicas, a problemas ambientais e sociais.

Esta é uma grande mudança de paradigma. O Rio assumiu uma posição de vanguarda em relação ao modo de desenvolver as cidades brasileiras, na medida em que colocou a prioridade máxima na região central. Ao dizer isso, não estou dizendo que não continuará tendo desenvolvimento na Barra ou em outras regiões. Continuará, pois ainda tem espaço e as regras urbanísticas estão mantidas, mas começamos a mudar um pouco a lógica, que é das pessoas, do mercado e da própria prefeitura. E, inclusive, mudar a lógica de alguns instrumentos regulatórios que temos sobre o território. Criamos, então, uma legislação para a cidade, que promove a sua expansão e temos também parcerias público-privadas e operações consorciadas, como no Centro, no Porto Maravilha. Começamos a ter um novo modo de criar um arcabouço jurídico para cuidar da cidade que já existe.

O INSTITUTO RIO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE LANÇOU, RECENTEMENTE, UM EDITAL PARA FOMENTAR A APRESENTAÇÃO DE ARTISTAS E ARTESÃOS NA PRAÇA TIRADENTES. O SR. PODERIA EXPLICAR UM POUCO DESTA INICIATIVA?

>>Não basta só a obra. Ela é fundamental, mas sozinha não basta. Temos que olhar para a dimensão física, mas também simbólica, intangível. A cidade é o amálgama desses dois valores. E isso é muito bacana, porque é desafiador em termos de políticas públicas. Nós temos uma tendência a sermos um pouco fordistas em políticas públicas. Uma única política pública não vai resolver todos os problemas. Precisamos ter um cardápio de políticas públicas. 

A Praça Tiradentes é um fenômeno, um case interessante, porque, ao mesmo tempo em que houve uma melhoria significativa a partir do Programa Monumento, tanto na recuperação de bens de patrimônio quanto de bens culturais, patrimônios arco edificados, houve a melhoria do espaço público da praça, pois nós retiramos as grades da Praça Tiradentes. Quando fizemos isso, tínhamos uma grande preocupação com alguns preconceitos urbanos, como a ocupação da população de rua e a insegurança, sob o argumento de aumento no número de assaltos. Aconteceu exatamente o contrário. A Praça é mais utilizada, as pessoas caminham melhor por ela. Mesmo quando tem população de rua, estabelecemos negociações do espaço público, ficando um espaço para todos. 

A Praça Tiradentes tem um fundo financeiro, o Fundo Especial da Praça Tiradentes. Isso dá uma condição muito interessante em termos de governança. Infelizmente, nós só temos isso na Praça Tiradentes. O modelo do fundo permite que possamos produzir estes conteúdos de ocupação. A praça teve uma melhoria física e começamos a observar uma aproximação, a chegada de novos espaços culturais. Criamos um espaço dedicado ao design na Praça Tiradentes, que é o Centro Carioca de Design. Foram abertas galerias de arte, espaços de moda. Então, começou a ter uma nova comunidade na praça, que era muito esvaziada. O próprio Centro de Referência do Artesanato Brasileiro é um espaço cultural fantástico. Essa mudança física trouxe uma nova comunidade, que começou a usar o espaço mais intensamente. Pensamos, então, numa maneira de contribuir e resolvemos abrir o edital. O objetivo desse edital era promover um evento que acontece uma vez ao mês, o Tiradentes Cultural, que é uma iniciativa da sociedade civil, para que ele possa ter apoio público no sentido de ter uma oferta de atividades culturais. Além do que acontece no evento, da feirinha de artes, de moda e de gastronomia, terá também show de música, apresentação folclórica, de teatro, entre outras atividades. Isso cria mais atrativos para a praça e é um modo de fazer com que a comunidade entenda o papel desse fundo e possa até, por ventura, aportar recursos nele. 

AINDA EM RELAÇÃO AO EDITAL DE ESTÍMULO À OCUPAÇÃO DA PRAÇA TIRADENTES, A INICIATICA CONTA COM RECURSOS MUNICIPAIS, MAS É GERIDA A PARTIR DE DECISÕES TOMADAS EM CONJUNTO COM A SOCIEDADE CIVIL. COMO SE DÁ ESTE DIÁLOGO COM A SOCIEDADE?

>>A gestão da Praça Tiradentes é uma gestão participativa que conta com um conselho curador que tem membros da sociedade civil, da comunidade local. É a primeira vez que isso está funcionando na cidade. É um projeto pioneiro. Essa forma de trabalho é nova tanto para a prefeitura, quanto para a sociedade civil. Temos um fundo, um recurso, e o conselho decide a melhor forma de usá-lo, a forma mais sustentável. Podemos gastar e não ter retorno para o fundo ou balancear. São debates não só do governo, é uma decisão compartilhada, participada. 

ESTE ANO, O SR. FOI CURADOR DO PAVILHÃO BRASILEIRO NA BIENAL DE ARQUITETURA DE VENEZA, QUE REUNIU 15 PROJETOS DE ARQUITETURA E URBANISMO, NA EXPOSIÇÃO INTITULADA “JUNTOS.”. O SR. PODERIA FALAR UM POUCO SOBRE OS PROJETOS ESCOLHIDOS E QUE TIVERAM COMO MARCA A MOBLIZAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL PARA MELHORAR O AMBIENTE URBANO QUE A CERCA?

>>Quase todos os projetos tinham essa característica.  Mesmo naqueles em que houve investimento de recursos públicos, como, o Parque de Madureira, teve origem nos moradores locais, que queriam usar a área como parque. Todos os projetos mostrados foram processos longos, nos quais a sociedade civil organizada lutou pela melhoria do seu espaço público, do seu lugar. Eu cito três exemplos.

O Parque e Instituto Sitié, no Vidigal, iniciativa de um morador, que começou a limpar o terreno do lixo e a fazer um jardim no lugar. Isso fez com que vizinhos e outras pessoas começassem a se reunir em torno do projeto e, hoje, ele se constitui  em um embrião de parque urbano. 

Outro exemplo interessante é Casa do Jongo. Buscando preservar e resgatar o jongo, ou seja, um saber, moradores e ONGs converteram o resgate de uma tradição em uma força cultural que se conecta a uma força econômica. Num dado momento, eles conseguiram um espaço público, que se converteu num espaço cultural público. 

Temos também o caso da Associação Cultural Vila Flores, em Porto Alegre. Um edifício privado, com grande valor histórico, que estava abandonado e foi recuperado por um de seus herdeiros. Além do valor histórico dessa propriedade, foi resgatado o seu sentido como bem cultural, como espaço de reunião pública. 

Essas três histórias demonstram como a cidade se constitui num fenômeno interessante, no qual questões públicas e privadas dialogam e se retroalimentam, em vez de se oporem. Essa é a mágica da cidade. A cidade é o lugar do público e do privado se encontrarem. Temos a nossa casa e a rua e estabelecemos valores e modos de uso distintos para cada uma. No entanto, essas duas dimensões estão totalmente imbricadas. 

Eu procurei levar para o pavilhão histórias que mostrassem isso e que fornecessem um panorama do país, sem focar somente nos estados do Rio e de São Paulo. Mostrei projetos de Recife, como o Centro Escola do Mangue, e iniciativas que criaram processos participativos e educacionais para a comunidade de Paraopeba, no Pará, fazendo com que essa própria comunidade opinasse sobre a qualidade da implantação do Minha Casa, Minha Vida que iriam receber.