Entrevista com Fernando de Mello Franco

Entrevistado: Fernando de Mello Franco, Secretário Municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo

 

FGV Projetos: Em 2014, a cidade de São Paulo aprovou um novo Plano Diretor Estratégico (PDE) do Município, com o intuito de humanizar e reequilibrar a cidade. Atualmente, quais políticas e/ou ações foram adotadas pela cidade de São Paulo na direção de um desenvolvimento urbano sustentável?

Fernando de Mello Franco: Nós partimos de algumas interpretações da cidade. A interpretação que talvez seja a mais prioritária é a de que hoje há um quadro avassalador de desigualdade e de segregação espacial e social que, em grande medida, é onde se encontra grande parte dos problemas da cidade, do ponto de vista dos desequilíbrios e disfunções sociais, econômicas e ambientais. A partir disso, torna-se necessário, primeiramente, compreender que a cidade é um ecossistema e que, se não equilibrarmos a relação entre os seus componentes, nenhuma parte da cidade florescerá por si só. Logo, precisamos ter uma visão sistêmica e holística do problema. 

Sendo assim, alguns desafios importantes se impõem. O primeiro é que São Paulo não pode mais crescer, porque o seu crescimento horizontal tem provocado impactos, sobretudo, nas áreas de produção de água, agravando a insegurança hídrica do abastecimento de 20 milhões de pessoas, do ponto de vista metropolitano. A cidade, portanto, só pode se transformar por dentro.

Por outro lado, existem movimentos muito legítimos, como movimentos de bairros e movimentos sociais, cujos membros que moram em recintos consolidados da cidade pleiteiam sua memória, identidade e morfologia, ou seja, que as características locais não sejam sufocadas devido aos processos de verticalização e adensamento.

Sabemos, ao mesmo tempo, que a cidade tem um déficit habitacional de 380 mil unidades habitacionais, que a taxa de crescimento está decrescendo e que a população deve parar de crescer por volta do ano de 2040. Mas, até lá, São Paulo ainda receberá dois milhões de pessoas no âmbito da metrópole e um milhão somente no município de São Paulo. Como iremos abrigar todas essas pessoas? Nesse quesito, o plano diretor estabelece algumas estratégias claras. Primeiro, estabelece um conjunto de instrumentos, visando à construção de uma política habitacional. Entre esses instrumentos está a multiplicação das áreas de ZEIS - Zonas Especiais de Interesse Social -, que realizam o estoque de terra para a construção e moradia popular. Há, ainda, as áreas de produção que foram praticamente dobradas devido à identificação de terras suficientes para o déficit. Há novos instrumentos como a PEUC - Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios - e o IPTU Progressivo que, juntos, auxiliam no cumprimento da função social da cidade, identificam imóveis subutilizados e criam mecanismos para que esses imóveis retornem ao mercado. Portanto, identifica onde podemos produzir e como acessaremos essa terra. Há também outros instrumentos, como a Cota de Solidariedade e o próprio Plano de Habitação, que nos fornece um horizonte, mostrando que o problema habitacional só se resolverá a longo prazo, mas é solúvel.  Do ponto de vista da acomodação desse contingente populacional que virá para São Paulo, identificamos um território estratégico na cidade, que se chama Macroárea de Estruturação Metropolitana, composto, basicamente, pelas várzeas e planícies fluviais relacionadas aos principais rios da cidade, Tietê, Pinheiros, Tamanduateí, onde a cidade industrial no passado foi implantada junto com a ferrovia e, depois, com as marginais. Essa área sofre com o processo de desconcentração e reestruturação produtiva em curso.

Tudo isso se une à estratégia de direcionar, por meio de instrumentos de regulação, todo o desenvolvimento imobiliário e a localização privilegiada de equipamentos de serviços urbanos a partir dos eixos de transporte público de massa de alta e média capacidade. Assim, o desenvolvimento urbano e da rede de transporte coletivo caminham em paralelo e, por isso, pretendemos estabelecer estratégias para melhorar o equilíbrio dessa relação de desenvolvimento da cidade com o território, com recursos ambientais e, ao mesmo tempo, estabelecer uma melhor relação entre os centros de moradia e emprego, organizados de forma difusa e em rede por toda a cidade a partir da oferta de transporte coletivo.

Um projeto interessante de destacarmos é o Arco do Futuro. A partir do plano diretor e do zoneamento, o Arco do Futuro recebeu uma figura legal, prevista na lei do PDE, que é exatamente a Macroárea de Estruturação Metropolitana. Esse grande território estratégico das planícies dos principais rios é, justamente, o território onde escrevemos a relação da cidade com as águas, no qual revemos o uso do parque fabril subutilizado e estabelecemos novos modelos de urbanização que proponham uma mescla mais equilibrada de oferta de trabalho, serviços e moradia. As operações que pretendem alterar esse território já estão em curso. Todas as operações de ZEIS estão inseridas dentro deste perímetro e revimos a ZEI da Água Branca e da Faria Lima. Está em curso na Câmara uma revisão das operações nas águas espraiadas, que é a planície fluvial do rio Pinheiros, e está tramitando uma nova revisão urbana do Tamanduateí. Até o final do ano, vamos enviar o projeto de lei “Lote Tietê”, que abarca a planície do Tietê. O Arco do Futuro vem sendo construído, sucessivamente, a partir de processos de regulação e de projetos. É um processo bastante complexo, mas que sendo embasado por todo esse material de gestão urbana, provavelmente, será uma das principais discussões da agenda urbana de São Paulo, visto que a gestão atual, basicamente, focou na renovação do marco regulatório. Uma vez superada essa fase, a etapa subsequente seria a implementação de planos e projetos.

Em relação ao espaço público, estamos em um momento de discussão muito interessante que diz respeito a um debate sobre as formas de uso da cidade. Estamos passando por um processo de democratização do uso do espaço público, que, em uma cidade como São Paulo, é muito escasso. A relação entre espaço público e espaço privado é muito desproporcional quando comparamos com outras cidades do mundo. Há muito menos espaço público do que se deveria ter. As ruas são estreitas, com poucas praças e parques e esse espaço é disputado por automóveis particulares, transporte público, ciclistas e pedestres. Diante dessa escassez, é preciso estabelecer um pacto sobre como o espaço vai ser compartilhado. Isso vem sendo feito em privilégio não mais do uso do espaço público pelo viário/sistema de mobilidade individual, baseado no automóvel, mas dos meios coletivos e de mobilidade ativos, ou seja, os não motorizados, como o próprio caminhar e o pedalar. Quando orientamos o desenvolvimento da cidade relacionando-o ao desenvolvimento da malha de transporte coletivo, isso impacta diretamente no espaço público. Isto ocorre porque quando eu não estamos nos locomovendo, prioritariamente, dentro das nossas bolhas-automóveis, mas a partir de formas ativas, como quando descemos do ônibus, metrô ou trem e caminhamos até nossas casas, trabalho ou escola, passamos a estabelecer outras relações com o espaço público, com estes trajetos que o carro não proporciona. Essa é uma das principais questões que vêm surgindo em São Paulo, e pode ser tematizada enquanto emblema pela discussão da Avenida Paulista. Há aqueles que dizem que, nos finais de semana, a Paulista está fechada aos carros. E há os que dizem que está aberta às pessoas. Não é uma discussão semântica, mas uma profunda discussão de valor da vida urbana.  E esse, para mim, é o principal debate da cidade de São Paulo, hoje.

 

CONSIDERANDO-SE QUE A GOVERNANÇA DIZ RESPEITO NÃO APENAS A GOVERNOS, ÓRGÃOS OFICIAIS E SUAS RESPECTIVAS AUTORIDADES, COMO TAMBÉM À SOCIEDADE CIVIL, AO SETOR PRIVADO E A ORGANZIAÇÕES DIVERSAS, COMO A SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO (SMDU) TEM BUSCADO ESTABELECER O DIÁOLOGO COM ESSES DIFERENTES SETORES?

>> Para transformar a cidade, precisamos, antes, estabelecer um sistema de planejamento, que é aquele que antecipa, prevê e projeta a transformação. Nós temos um macro sistema definido pela Constituição, pelo Estatuto da Cidade e, agora, pelo Estatuto da Metrópole, que coloca a necessidade de elaboração de plano diretor, de zoneamento. Viemos aprimorando esse sistema de monitoramento, focando na revisão do marco regulatório que incide diretamente sobre o sistema de planejamento. Estamos descendo um degrau na escala e finalizando os projetos dos planos das subprefeituras, os planos regionais, que visam a aproximar o sistema de planejamento à dimensão local da cidade. Ao mesmo tempo, estamos participando da formulação da PDDI - Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado -, que é regido pelo Estatuto da Metrópole. Trata-se do plano metropolitano, sob coordenação do Estado e com participação da prefeitura e das outras 38 municipalidades da região metropolitana.

Esse sistema de planejamento estabelece uma série de conselhos, fundos e fóruns que estão sendo empoderados e estruturados. Parte desse sistema visa ao fortalecimento das instâncias de participação da sociedade organizada, de participação popular. Para fortalecer essas instâncias, audiências clássicas e oficinas públicas presenciais vêm sendo realizadas. Em uma cidade como São Paulo, é impossível colocar 10 mil pessoas numa sala para realizar uma discussão, com tempo de fala igual para todos. Por outro lado, 10 mil pessoas para uma cidade de 10 milhões é muito pouco representativo. Por isso, temos desenvolvido outras metodologias já implantadas na nossa gestão, como também estabelecemos uma plataforma eletrônica que tem demonstrado ser muito efetiva, a Gestão Urbana. Essa plataforma multiplica as instâncias de participação, a partir do momento em que abrimos ferramentas de diálogo, de proposição e de consulta.  Enquanto em uma audiência presencial tínhamos uma média de 300 pessoas, conforme as audiências passaram a ser transmitidas online, reverberando na plataforma, multiplicávamos por 10, 15 vezes a participação.

Mas, para termos uma sociedade civil de fato qualificada para este debate, precisamos capacitá-la oferecendo informações. Também criamos a Plataforma GeoSampa, que sistematiza todos os 256 bancos de dados da prefeitura e de validação desses dados. Já temos mais de 170 camadas de informações, inclusive, de IPTU, e outras mais, o que tem sido fundamental não só para o aprimoramento das formas de gestão internas da prefeitura, como também para que a população tenha acesso às informações que a permitam fazer suas reflexões e construir suas demandas e propostas.

Também recepcionamos uma plataforma, que era da Rede Nossa São Paulo, de monitoramento de indicadores municipais. Essa plataforma também está hoje na SMDU, com o nome de Observa Sampa. Devemos lançar outra plataforma, de monitoramento do PDE. O plano visa 16 anos, e precisamos observar e mensurar seus impactos e efeitos. Essa nova plataforma vai possibilitar que não tenhamos um monitoramento subjetivado, pautado somente por ‘se está ou não dando certo’, para que possamos comprovar que desde a implantação da PEUC, há dois anos, mais de dois mil imóveis foram notificados e mais de 2,3 milhões de metros quadrados identificados. Dessa forma, estruturamos todo um sistema de planejamento, informação e análise em participação social que é fundamental para esta governança que envolva tanto o poder público quanto os atores da sociedade civil e do mercado.

 

QUESITOS COMO TRANSPARÊNCIA E PRESTAÇÃO DE CONTAS SÃO ESSENCIAIS COMO MEIOS DE CRIAR A CONFIANÇA NO CIDADÃO. QUAIS SÃO AS INICIATIVAS QUE A CIDADE DE SÃO PAULO POSSUI NESSE SENTIDO?

>> Há duas macro ações nesta gestão em relação à transparência. A primeira, foi a criação da Controladoria Geral do Município, órgão com total autonomia que já desbaratou alguns focos de corrupção e fez retornar aos cofres públicos cerca de 480 milhões de reais. Essa controladoria é fundamental para termos mais transparência. Além disso, adotamos uma política de governo aberto. Há uma série de decretos que estabelecem quais as informações devem ser disponibilizadas e como.  Grande parte desse conjunto de informações é sistematizado pela GeoSampa, que é de uma plataforma de metadados que, na linguagem comum, articula cada um dos entes dos 256 bancos de dados da prefeitura, valida e disponibiliza as informações para toda a população. Há informações singelas, como onde estão localizadas as lixeiras da cidade, mas também há informações substantivas, como dados de IPTU, cota fiscal, que são fundamentais para o processo de desenvolvimento urbano da cidade.

 

RECENTEMENTE, O SR. ESTEVE EM QUITO PARA A 3ª CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MORADIA E DESENVOLVIMENTO URBANO SUSTENTÁVEL (HABITAT III), QUE ESTABELECEU UMA NOVA AGENDA URBANA, DOCUMENTO QUE VAI ORIENTAR A URBANIZAÇÃO SUSTENTÁVEL PELOS PRÓXIMOS 20 ANOS. O SR. PODERIA FALAR UM POUCO SOBRE ESTA NOVA AGENDA? 

>> A dita nova agenda urbana que foi sacramentada pela 3ª Conferência, HABITAT III, é um conjunto de diretrizes de boníssimas intenções que visam à garantia de moradia a todos, a promoção de ações de desenvolvimento sustentável, no sentido da conservação dos recursos do planeta, o melhor equilíbrio das funcionalidades urbanas, o privilégio de sistemas de mobilidade coletiva em detrimento do individual pelo automóvel. A nova agenda urbana também coloca questões como a redução da emissão de carbono para mitigar os efeitos climáticos, a promoção de desenvolvimento econômico e do emprego qualificado, entre outras. Nós concordamos integralmente, ou substancialmente com uma parte dessa agenda, mas vale a pena destacar que a agenda da ONU é focada, principalmente, nas estruturas de governança de municípios, estados ou nações frágeis que, de fato, percebem essas resoluções da ONU como meios de empoderamento para a sociedade ou para o governo local, relacionados, sobretudo, aos processos de disputa inerentes ao território.

Mas, no caso de São Paulo, levamos para Quito uma mensagem otimista, pois grande parte dessa agenda já foi sacramentada na forma de lei no Plano Diretor e a própria prefeitura de São Paulo já vem praticando. Logo, fomos mostrar como, efetivamente, estamos implementando-a não apenas nos últimos anos, já que há um processo forte de fortalecimento do nosso sistema de planejamento nacional e, sobretudo, municipal. Isso nos leva à conclusão de que essa agenda não é uma utopia distante, mas de que ela é possível de ser implementada e depende mais de uma conjuração política do que de instrumentos de financiamento dessa nova agenda. A experiência de São Paulo fez com que participássemos de uma série de eventos, apresentando o sistema de participação popular, a mobilidade, a construção de moradia popular, a regulação, os planos diretores, os espaços públicos. Assim, conseguimos participar de um espectro muito abrangente de discussões, o que mais uma vez confirma a constatação de que a agenda urbana é factível e de que São Paulo vem implementando e aprimorando. 

 

NA SUA AVALIAÇÃO, POR QUE A PARTICIPAÇÃO DE GOVERNOS LOCAIS É TÃO IMPORTANTE PARA PROMOVER O DESENVOLVIMENTO URBANO SUSTENTÁVEL?

>> Se perguntarmos para as pessoas se elas lembram em quem votaram para prefeito, deputado estadual ou federal nas últimas eleições, muito provavelmente, elas vão ter dificuldades, mas vão lembrar em quem votaram para prefeito. Isto é, a partir do momento em que a maioria da população é urbana, e no caso do Brasil, algo em torno de 90% mora nas cidades, é a partir do território local, do governo local, que a vida cotidiana se estabelece. Fazem muito mais sentido, para o dia a dia das pessoas, as políticas locais de mobilidade, educação, espaços públicos do que, talvez, medidas tão abstratas, como as macroeconômicas ou as grandes diretrizes. A partir do momento em que todos nós temos contato com o urbano é na cidade que as relações se fortalecem e se estabelecem. Portanto, são os governos locais aqueles que dialogam diretamente com as demandas mais cotidianas da população. Por isso, devem ser muito bem representados neste debate.